segunda-feira, agosto 28, 2006

O cabelo como prolongamento da psique feminina

Em uma cidade que provoca suspiros admirados nos turistas e lágrimas mal engolidas em seus habitantes, ela conheceu o ciúme. Pior: conheceu o ciúme em uma rival inteligente de seios majestosos, olhar amendoado e cabelos lisos. A bússola ficou para trás, perdida em alguma esteira de aeroporto, e ela passou a caminhar desnorteada pelas ruas noires-et-blanches, onde cada tijolo podia conter um espelho côncavo, que exagerava seus defeitos e a deixava à mercê da solidão que lhe causava o horror do encontro consigo mesma.
Uma manhã, a seção de classificados do jornal anunciava em grandes letras cortes de cabelo gratuitos, realizados por estudantes de coiffure. Meteu-se nos casacos que a faziam sentir-se desajeitada e deselegante em meio às impecáveis européias, e tomou o metrô. Desceu na estação Richelieu e em poucos minutos chegou a um prédio de aparência nobre, onde o portão se abria sem a necessidade de digitar o código. Timidamente foi entrando e disse seu nome à menina arrogante e bem-vestida que a encarava na entrada. Mais duas moças aguardavam na sala de espera para ter seus cabelos cortados, mas ambas estavam tão à vontade em suas poltronas de couro italiano, que não lhe despertaram nenhum sentimento de cumplicidade. Antes, uma leve lembrança de desamparo roçou-lhe a nuca enquanto fingia folhear uma revista qualquer. Quando seu nome foi chamado na sala ao lado, levantou-se em câmera lenta, procurando ignorar os olhares que naturalmente se voltavam a ela.
Murmurou um travoso Bonjour e sentou-se na cadeira no meio da sala, ante o olhar curioso de uma platéia de estudantes com suas pranchetas e canetas a postos. Sem nem mesmo esboçar cerimônia, o cabeleireiro aproximou-se e foi pegando em seu objeto de trabalho, expondo à platéia atenta seus defeitos e as possíveis soluções para o caso. Ela sentiu-se como um cadáver na Universidade de Medicina e não foi sem esforço que conseguiu balbuciar que “cortar, tudo bem, mas a cor é que não mudaria”. A chacina começou de súbito e as mechas se acumulavam no chão sem o menor ruído, como que resignadas. Aquele silêncio a enfurecia. Ninguém ali parecia se dar conta do óbvio, de que o cabelo é um prolongamento da psique feminina. A cadeira girava e o barulho da tesoura era mordaz e incessante, como uma tortura bem calculada. Queria sair correndo, gritar, mas a compenetração dos estudantes a impedia. E ali ela soube que já não se pertencia. Entregara-se, e era o fim. Quando o holocausto terminou, os alunos vieram-lhe pegar nos cabelos e alguns até lembravam de perguntar se ela havia gostado do resultado.
Foi com um misto de alívio e orgulho que deixou o centro. A juba leonina havia crescido para cima e exigia uma nova personalidade. Ocorreu-lhe que só os corajosos saíam assim na rua. Estufou o peito e diminuiu o passo, mas no fundo sabia que assim que chegasse em casa tomaria um banho e prenderia todo e qualquer fio com um elástico implacável.
Uma urgência, no entanto, a fez adiar a volta. Subjugada pela cabeleira, rumou em direção ao apartamento daquela dos seios majestosos, olhos amendoados e cabelos lisos. Antecipando o gozo do encontro, sorria pois sabia que agora tudo estava exposto em plena luz do dia. O mundo podia enfim se condoer oficialmente dela, pois seu lado sombrio não mais se escondia em uma caverna estranha e desconhecida. Como ansiava a vítima por mostrar ao seu algoz as marcas indeléveis do suplício! Coroada com a humilhação, andou triunfante até a casa daquela que despertara seus monstros mais secretos para, finalmente, mostrar-lhe a concretude de sua dor.

2 Comments:

Blogger malvinas said...

uou!

11:11 AM  
Blogger malvinas said...

NUUUUUUUUUUUUUUUUUUU!

6:27 PM  

Postar um comentário

<< Home