terça-feira, janeiro 09, 2007

Love Story

Faz um tempão, eu sei, que vocês querem esse texto aqui. Mas tá difícil. Tá difícil por um monte de coisas, difícil porque vencer nossos próprios preconceitos e tomar as rédeas da própria vida de cabeça erguida não é fácil como parece nos livros, difícil porque sexo é mesmo difícil de explicar – e isso é uma das coisas das quais trata esse texto, uma coisa que demorei muito pra descobrir: sexo não se teoriza, por mais que as revistas femininas, os psicanalistas e nós todas façamos isso o tempo todo, achando que em alguma conclusão chegaremos e estragando o grande barato que é conseguir não pensar, mais ou menos como buscam os zen-budistas na meditação.

Eu não sei como buscar o fio desse texto. É um fio longo e enrolado, cheio de nozinhos antigos, porque vem guardado e, como eu disse, esperado, há muito tempo, e muitas coisas já se atrelaram e entrelaçaram nesse fio, entre elas um quase casamento, um roommate, uma caralhada de colegas de trabalho, uma mãe ciumenta e modernosa de Iansã, dois gatos, uma casa verde-nilo em cima de um morro, uma casa na Lapa com cara de cantina, um porão perigoso de entrar sem ser vista, um tanto de música eletrônica, um tanto de samba, muito Caetano, algumas drogas, muitas cervejas, o Rio de Janeiro, os amigos bichas e as amigas de escola, uma viagem à Salvador, o céu do cerrado, algumas festas, muitas boates, o poder da imagem, o mergulho do conteúdo, o vinho, o vinho, o vinho, e tanta coisa mais. Tudo que já se embaralhou tanto que é difícil de contar, mais ou menos como tentar explicar a alguém o motivo de uma briga de casal quando se está num fim de namoro doído – quem sabe explicar como começou aquela briga que se arrastou por 300 quilômetros de estrada? São nós e pontos intrínsecos, dialéticos, difíceis de desemaranhar pra contar história reta.

Mas como vocês já notaram, estou enrolando. Queria fazer uma crônica divertida, no estilo de um Veríssimo ou Xico Sá de saias e lésbico, explicando qual é a diferença entre transar com um homem e transar com uma mulher. Pensei nisso. Mas, gente!, não dá pra comparar, não. É tão absolutamente diferente, tão essencialmente igual! E na verdade não sei se essa comparação interessa a alguém. Acho que fica mais próximo da sinceridade do que eu vivi, e vivo, contar a história de uma história de amor, pra ninguém esquecer de acreditar que o velho amor está sempre lá a nossa espreita, que não é mentira, que não é romance, e que de verdade quando a paixão é grande ela se torna senhora da gente, que manda tudo pro inferno e nos ordena a fazer tudo segundo seus desejos, nos ordena a adequar a vida para vivê-la, e até onde isso é bom ou ruim eu não sei, mas que existe, existe. E se é pra qualificar acho que é mais bom do que ruim, sim, porque acho que faz parte da nossa condição de animal cheio de sentimentos e emoções e paixão e paixão e paixão ser um pouco escravo de um sentimento e senhor da vida racional. Ser escravo da razão o tempo todo sem dúvida deve contribuir muito para ficarmos modernamente neuróticos. Sem coração, sem espiritual, só no que os olhos vêem... Mas sem tratados de psicanálise de botequim, maestro. Vamos lá.

A História de uma Segunda Primeira Vez

O ônibus convencional Brasília-São Paulo deve ser uma das piores rotas da malha rodoviária brasileira. Dezoito horas de viagem, umas noventa e quatro paradas. O ar condicionado era gelado, e eu não tinha agasalho. Vinha de uma ressaca não curada de três dias de rave, três dias de solidão e de desapontamento, porque parti nessa aventura louca de passar o carnaval numa festa rave no meio do cerrado pra pôr à prova alguma coisa que eu fingia não saber direito o que era, mas que já sabia, sim: eu estava apaixonada por uma mulher. E não era nem uma amiguinha, uma coisa de adolescente, aquele tipo de coisa que as mães falam que passa e os psicólogos falam que é experimentação da sexualidade. Até porque por essa eu nem passei. Engraçada essa vida... mas isso não vem ao caso, não farei aqui uma explanação da minha história sexual, pelo menos não nesse texto. Voltemos: uma mulher em toda a extensão da palavra, como se dizia antigamente, uma mulher de trinta, praticamente minha chefe, não fôssemos de áreas diferentes, absolutamente polêmica na firma-pequena-onde-todo-mundo-se-conhece-e-é-mais-ou-menos-igual, toda moderna, com jeito de doidona, artista, enfim. E lésbica – era o que diziam as más (ou atentas) línguas. Eu por mim, não sabia: ficamos amigas, bebíamos muito, falávamos da vida, eu chorava umas mágoas de amor, ela nunca dizia nada a esse respeito, e aprendi com ela muito de não invadir a vida alheia – então não perguntava. Depois de alguns meses os colegas começaram a comentar o óbvio – que ela estava dando em cima de mim – e eu negava, veemente, povo não tem o que fazer e faz fofoca, sou amiga da garota, o povo acha ela esquisita, pronto: já tem sacanagem no meio. Eu não dava a mínima, ela me contava milhões de coisas que eu não sabia, eu fazia um monte de análises que (acho) a surpreendiam, íamos de vez em quando pra balada juntas, trocávamos cds, livros, essas coisas normais de amigos. Fomos ficando cada vez mais próximas e meio dependentes uma da outra, o bar depois do trabalho passou a ser quase todos os dias, passávamos a noite de sábado até de madrugada falando no msn, e chegamos a um ponto de acabarmos nos encontrando até no final de semana, pra almoçar num sábado chuvoso, ou uma cerveja combinada de última hora pelo msn às 10 da noite de um domingo, numa atitude não muito normal pra uma simples amizade de trabalho entre pessoas tão diferentes.

Foi isso que me deu o clique: quando saquei que era o terceiro ou quarto domingo seguido em que nos encontrávamos, além dos sábados ou sextas em encontros virtuais, tive que admitir que tinha alguma coisa muito estranha na história toda. E aí rolou o convite pra tal festa rave, e fiquei na sinuca de bico de decidir se dava a cara pra bater, e eram muitos os possíveis tapas (podia estar viajando, podia não ser nada disso, podia desistir na última hora e fazer o maior papelão, podia magoar uma pessoa que eu gostava, podia como em qualquer aposta dessas, ser rejeitada, e pior de todos os piores: podia ser lésbica – socorro!!!), ou se ficava na eterna dúvida, sem olhar pra ver o que tinha depois da curva. Eu fui.

Só que a tal da festa não deu em nada. Assim que percebi (ou julguei perceber) que o negócio não ia pra frente, me retraí, sumia, passava horas a fio fumando maconha, doida de ácido, conversando com uns malucos de rave e me perguntando que idéia louca fora aquela de ir pra aquele lugar infernal, sem meus amigos, com aquela mina que afinal de contas era quase uma desconhecida e ainda por cima tinha feito o maior nó na minha cabeça e no meu coração. Saímos da festa, pra completar, um pouco brigadas, eu ia embora daquele lugar naquele minuto nem que fosse a última coisa que eu fizesse nesse mundo de deus, e ela queria ficar. Eu sem dinheiro, sem ter pra onde ir, num lugar qualquer perdido no cerrado. Fiz minha mala, desmontei a barraca, ela cedeu bastante puta da vida e dizendo que nunca conseguiríamos sair de lá sem o ônibus da excursão, mas pegamos uma carona pra uma Bras-Ilha deserta no meio do carnaval. Ainda ganhamos um ácido dos meninos que nos levaram, e eu, triunfante, disse a ela dizendo pra mim mesma: “acredite na sorte”.

E eu acreditei. Acreditei porque mesmo depois disso, na frio do ônibus de volta, montei na minha cabeça um desenho, eu que não sei desenhar, uma carta agradecendo a ela pela viagem. Porque apesar de tudo tinha valido a pena. E faltamos juntas no trabalho na quinta-feira, e na sexta às 3h da manhã, bêbada, botei no papel meu desenho-carta, feito com giz de cera em folha A3, que eu lembro que começava assim: “se eu soubesse desenhar, faria uma ilha cercada de céu por todos os lados...”. Era o céu do cerrado. Guardei escondido no fundo da gaveta.

Na segunda-feira saímos juntas do escritório de carro e acabamos indo parar num bar que nunca tínhamos ido juntas e nem tão perto do trabalho, já não me lembro porquê. De qualquer forma, era a última chance que eu dava pra sorte, ou pro azar; hoje eu vou beber cachaça. E bebi. Bebemos. Muita cachaça e chope, até o bar quase fechar. Fomos pra casa dela, a sala escura.

eu (bêbada): vodka, vodka... até que tá boa essa vodka.

ela (também bêbada): quer tomar um ácido?

eu: hahahahaahahhahaha ácido? numa segunda-feira à uma da manhã?

ela: é.

eu: quero.

O ácido não bateu, ou só foi bater muito depois. Sei que o quarto dela tinha uma rede vermelha, ela deitou na rede e eu deitei na cama. Ficamos ainda conversando, assuntos infinitos. Eu, bêbada e ridícula, sem saber o que fazer (ou vai dizer que vocês sabem chavecar uma garota?), mas também sem pensar muito. Eu fiz o que meu coração mandou. Uma das poucas vezes na vida, até aquele momento, em que deixei meu coração falar, porque só ele saberia o que fazer. Sei que ela, garota esperta, me conduziu na mão (sem trocadilhos, por favor), durante todo o tempo antes desse dia para que esse dia acontecesse do jeito que ela queria: quem tomou a iniciativa fui eu, simplesmente porque não tinha mais alternativa. Ela me fez não ter alternativa. E pela primeira vez na minha vida quem tomou a iniciativa do primeiro beijo de uma história fui eu.

Eu acho que nunca vou esquecer esse último momento antes do primeiro beijo principalmente porque não me lembro de quase nada que veio depois. Se foi o ácido, ou se foi o amor, o medo, a surpresa ou outra coisa eu não sei, mas embora eu lembre que me deixei levar na loucura de estar quase num espelho que se mexe, não consigo lembrar dos detalhes e atos dessa minha segunda primeira vez. Saí de lá às quatro horas da manhã totalmente fora do ar (muito pela cachaça, é verdade) mas absolutamente tranqüila.

Gostei da imagem do espelho que se mexe. Acho que é o mais próximo que dá pra chegar de uma explicação do que é estar na cama com uma mulher. Mas tem que entender que o espelho não reproduz exatamente o que somos. Não é igual. É como um espelho d’água: às vezes dá pra se reconhecer mais, às vezes menos. Mas a experiência de corpo, de calor, é mais ou menos a mesma coisa do que estar com um homem. Afinal de contas, são pessoas, fundamentalmente. E corpo é bonito, é quente e é macio, independente do gênero. Acho engraçada a lenda que tem de “como é que duas mulheres transam” – já que não tem pau, é óbvio – porque me parece muito estranho que alguém possa reduzir sexo ao pau. E nem tô falando porque “há outros meios” – o que toda mulher já sabe –, mas porque sexo é corpo e calor, e pele. Não é meter, ou chupar, ou passar a mão, sei lá. É fechar os olhos e mergulhar. Não pensar. Esse amor me ensinou isso, entre um monte de outras coisas. Me ensinou a não pensar, porque se pensasse ia ter problemas. E eu não queria problemas. Como disseram, eu queria amor, amor e mais nada.







Logo vai fazer um ano que essa segunda-feira aconteceu. Engraçado, justo segunda-feira, dia de Exu. Aquele desenho que eu falei, entreguei dois dias depois. Muita água passou por debaixo da ponte, toda aquela água que falei no início do texto, e tantas coisas novas se agregaram à nossa história. À minha história, que contei pra vocês. Desculpem pelo texto longo, e agradeço a quem chegou até o fim. E quem quiser que conte outra.

6 Comments:

Blogger malvinas said...

é isso aí.

9:22 PM  
Blogger malvinas said...

longo e lindo.

12:19 PM  
Blogger malvinas said...

Confesso que eu esperava também por essa segunda-feira mais como uma expectadora curiosa, só pra ver o que ia acontecer, apesar das suas negativas. Mas meu amor, você me surpreendeu e se surpreendeu também, você subiu em cima do cavalo doido, nua na sela, gritando pra todo mundo que é mulher, mulher com M maiúsculo. Te amo e admiro demais por isso.

5:19 PM  
Anonymous Anônimo said...

adoro te ler. vc escreve de forma tão simples e tão... bonita. nunca sei quem é quem aqui, mas dá pra perceber seus textos.
por que não conta outra(s) história(s)?

6:05 PM  
Blogger malvinas said...

Dá-lhe mulherão!

10:57 PM  
Blogger malvinas said...

Só li agora. Parabéns! Pelo texto, é claro, que está incróvel, mas principalmente por ser você. Toda você.

7:58 PM  

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