sexta-feira, fevereiro 02, 2007

De deixar morrer

Primeiro foi rio acima, em um daqueles barcos grandes que levam os paraenses à Manaus e os amazonenses ao Pará. As redes todas misturadas numa colorida confusão ocupavam cada canto que podiam. Verdes, amarelas, azuis, com varanda, bordadas à mão, feitas de algodão ou crochê... tão próximas que acabavam com qualquer lembrança de privacidade
Eu vi quando eles chegaram e logo tratei de fazer caras de poucos amigos, para ver se iam acrochar suas redes longe da minha, já tão espremida. Não surtiu efeito. O homem pôs a sua cama nômade bem na minha frente e depois foi tratando de atar a dos filhos e da mulher ao seu redor.
Enfim o apito soou (que angústia provoca um barco parado!) e a paisagem foi ficando amazônica com suas pequenas palafitas e verdes imensidões. Pouco depois veio o choro – alto e desesperado, cortado por palavras que balbuciavam algo sobre problema no coração.
Eram da mulher dele e foi assim que, pela primeira vez, vi um homem morrer na minha frente. E eu, que não sabia que alguém podia deixar esse mundo em plena quarta-feira, às duas e meia da tarde, fiquei atônita. Os outros passageiros, ao contrário, acorreram ávidos para ver a morte nos olhos. A filhinha dele também. Driblou a mãe e a tia, que tentavam fazer com que ela ficasse longe da cena e ficou quieta de frente para o corpo, fitando-o. Uma cabecinha no meio da multidão rapina. Já está frio, alguém disse, e não faltou quem quisesse tocar os pés dele, para comprovar a temperatura e depois murmurar: é mesmo. A morte é besta, não tem solenidade nenhuma.
Como eu quis pegar aquela menina de cinco anos no colo e dizer que ia ficar tudo bem! Mas o rosto dela trazia uma expressão que me deixava pequena e impotente. Ela estava distante, como se estivesse se iniciando em mistérios que nenhum de nós conhecia. Em sua carinha infantil estavam os olhos de uma mulher.
Dez dias depois, eu estava tomando um suco em uma pequena cidade portuária quando um cortejo fúnebre passou na minha frente. O caixão seguia no alto de um caminhão do corpo de bombeiros, seguido por dezenas de motocicletas. Uma semana depois, andando em uma viela em Manaus, me deparo com um velório em uma pequena casa.
Por que três encontros com a morte nas minhas férias? A pergunta me envolve como um casaco e eu, que não acredito em respostas únicas, me digo: está na hora de saber deixar morrer.

1 Comments:

Blogger malvinas said...

Que bom te ter de volta, mulher. Saudade da sua sabedoria

7:16 PM  

Postar um comentário

<< Home