segunda-feira, outubro 06, 2008

como morrem os anjos

poucos carros circulam no amanhecer cinzento do sábado paulistano. seguindo as instruções do médico, estacionamos longe do número 432 da rua tal, apesar de, dado o horário, muitas vagas estarem disponíveis bem na frente do endereço. "evitem entrar de mãos dadas, como namorados. finjam que vocês são estudantes". um tanto constrangidos pela grandeza (?) do momento e também por lembrarmos, sem dizer, das instruções, seguimos separados e em silêncio até a portaria da construção moderna, toda branca, mesclando ferro e concreto.

abraço a mim mesma (o frio?) o mais forte que posso e meu namorado diz meu nome ao porteiro, um negro sorridente que fala alto no interfone: "tá subindo agora a malvina... a outra que subiu agora é... carmem. não, não: marcela". a voz alta e forte dele me faz estremecer. penso que ele não vai lembrar do meu nome daqui a poucos minutos, como esqueceu o da mulher antes de mim, e é como se isso me ofendesse de alguma forma.

subimos de elevador para o primeiro andar da clínica aparentemente deserta. as luzes quase todas apagadas, salas fechadas, corredores vazios. uma enfermeira nos manda aguardar numa pequena sala de espera. desabo no sofá de sono e tristeza. meu namorado pega uma revista velha que está sobre a mesa de vidro. duas faxineiras limpam uma sala próxima, falando alto. todos têm de estar dentro do esquema, penso com a minha cabeça de produtora investigativa. todos sabem o que acontece aqui nas madrugadas. o cachê deve ser alto.

somos encaminhados para um quarto, como um quarto de hospital chique ou, ironia macabra, de maternidade. a enfermeira, sorridente e impessoal, pede que eu vá ao banheiro e "tire toda a parte de baixo da roupa, tá, meu bem, a calcinha também" e vista o avental, a touca e umas meias esquisitas de centro cirúrgico. me pergunto se tenho cara de idiota ("a calcinha também") e num suspiro de vaidade feminina tento ajeitar a touca ridícula no espelho. meu namorado está do lado de fora e eu sei que deve estar pagando (em cash e diretamente para a enfermeira, como combinado) os muitos reais que custaram essa brincadeira. saio do quarto e ela não está mais lá. nos olhamos ainda constrangidos e não consigo suportar o carinho nem nenhum tipo de toque dele. penso que preferia ter vindo sozinha e me pergunto como faria para pagar a enfermeira. me pergunto o que achariam de mim se eu viesse sozinha. uma coitada. uma louca. uma pobre mulher abandonada por todos. eu teria vergonha de estar sozinha simplesmente porque a praxe é ter um acompanhante. mas nos longuíssimos quinze ou vinte minutos que aguardamos nesse quarto, eu nunca quis tanto estar só.

sou encaminhada a uma espécie de centro cirúrgico e mandam meu namorado esperar no quarto. finalmente encontro o médico, que me atendeu e negociou data e preço há poucos dias atrás. ele veste uma roupa esporte de marca e não usa avental. me pede pra deitar e me apresenta o anestesista, um menino novo, com jeito de médico recém-formado. diz que irei dormir em poucos segundos com a anestesia e por alguns instantes eu começo a achar que não está fazendo efeito. fade out.



sonho: estou num corredor abraçada num grande amigo meu. digo a ele: "você vai ser padrinho do meu filho".



fade in. acordo novamente no quarto e vejo a cara do meu namorado, sorrindo. pergunto se já acabou. estou confusa. ele começa a contar as coisas que eu disse quando voltei, entorpecida da morfina. que abracei o anestesista. etecétera e tal. inesperadamente, uma dor muito forte. quero ir embora imediatamente. tento levantar e não consigo. não sei por que não consigo. preciso sair daqui. tenho que sair daqui agora. meu namorado fica confuso mas tenta me acalmar. percebo levemente minha infantilidade e concentro minhas reclamações na dor, que de fato fica cada vez mais forte. choro e ele corre atrás da enfermeira, que traz um remédio amargo. a dor melhora aos poucos. é normal.

de volta a rua, a manhã já é clara.






não recomendo um aborto a ninguém. e não entrei, nem entrarei, no mérito de por quais motivos decidi fazer um aborto. mas uma coisa é certa e segura: uma boa parte do meu desgosto com essa situação teria sido evitado se o aborto no brasil fosse legal. a sensação criminosa, o dinheiro que se gasta e não se tem, o medo de uma complicação, tudo isso faz doer ainda mais uma dor que, pra qualquer mulher, já dói.