como morrem os anjos
poucos carros circulam no amanhecer cinzento do sábado paulistano. seguindo as instruções do médico, estacionamos longe do número 432 da rua tal, apesar de, dado o horário, muitas vagas estarem disponíveis bem na frente do endereço. "evitem entrar de mãos dadas, como namorados. finjam que vocês são estudantes". um tanto constrangidos pela grandeza (?) do momento e também por lembrarmos, sem dizer, das instruções, seguimos separados e em silêncio até a portaria da construção moderna, toda branca, mesclando ferro e concreto.
abraço a mim mesma (o frio?) o mais forte que posso e meu namorado diz meu nome ao porteiro, um negro sorridente que fala alto no interfone: "tá subindo agora a malvina... a outra que subiu agora é... carmem. não, não: marcela". a voz alta e forte dele me faz estremecer. penso que ele não vai lembrar do meu nome daqui a poucos minutos, como esqueceu o da mulher antes de mim, e é como se isso me ofendesse de alguma forma.
subimos de elevador para o primeiro andar da clínica aparentemente deserta. as luzes quase todas apagadas, salas fechadas, corredores vazios. uma enfermeira nos manda aguardar numa pequena sala de espera. desabo no sofá de sono e tristeza. meu namorado pega uma revista velha que está sobre a mesa de vidro. duas faxineiras limpam uma sala próxima, falando alto. todos têm de estar dentro do esquema, penso com a minha cabeça de produtora investigativa. todos sabem o que acontece aqui nas madrugadas. o cachê deve ser alto.
somos encaminhados para um quarto, como um quarto de hospital chique ou, ironia macabra, de maternidade. a enfermeira, sorridente e impessoal, pede que eu vá ao banheiro e "tire toda a parte de baixo da roupa, tá, meu bem, a calcinha também" e vista o avental, a touca e umas meias esquisitas de centro cirúrgico. me pergunto se tenho cara de idiota ("a calcinha também") e num suspiro de vaidade feminina tento ajeitar a touca ridícula no espelho. meu namorado está do lado de fora e eu sei que deve estar pagando (em cash e diretamente para a enfermeira, como combinado) os muitos reais que custaram essa brincadeira. saio do quarto e ela não está mais lá. nos olhamos ainda constrangidos e não consigo suportar o carinho nem nenhum tipo de toque dele. penso que preferia ter vindo sozinha e me pergunto como faria para pagar a enfermeira. me pergunto o que achariam de mim se eu viesse sozinha. uma coitada. uma louca. uma pobre mulher abandonada por todos. eu teria vergonha de estar sozinha simplesmente porque a praxe é ter um acompanhante. mas nos longuíssimos quinze ou vinte minutos que aguardamos nesse quarto, eu nunca quis tanto estar só.
sou encaminhada a uma espécie de centro cirúrgico e mandam meu namorado esperar no quarto. finalmente encontro o médico, que me atendeu e negociou data e preço há poucos dias atrás. ele veste uma roupa esporte de marca e não usa avental. me pede pra deitar e me apresenta o anestesista, um menino novo, com jeito de médico recém-formado. diz que irei dormir em poucos segundos com a anestesia e por alguns instantes eu começo a achar que não está fazendo efeito. fade out.
sonho: estou num corredor abraçada num grande amigo meu. digo a ele: "você vai ser padrinho do meu filho".
fade in. acordo novamente no quarto e vejo a cara do meu namorado, sorrindo. pergunto se já acabou. estou confusa. ele começa a contar as coisas que eu disse quando voltei, entorpecida da morfina. que abracei o anestesista. etecétera e tal. inesperadamente, uma dor muito forte. quero ir embora imediatamente. tento levantar e não consigo. não sei por que não consigo. preciso sair daqui. tenho que sair daqui agora. meu namorado fica confuso mas tenta me acalmar. percebo levemente minha infantilidade e concentro minhas reclamações na dor, que de fato fica cada vez mais forte. choro e ele corre atrás da enfermeira, que traz um remédio amargo. a dor melhora aos poucos. é normal.
de volta a rua, a manhã já é clara.
não recomendo um aborto a ninguém. e não entrei, nem entrarei, no mérito de por quais motivos decidi fazer um aborto. mas uma coisa é certa e segura: uma boa parte do meu desgosto com essa situação teria sido evitado se o aborto no brasil fosse legal. a sensação criminosa, o dinheiro que se gasta e não se tem, o medo de uma complicação, tudo isso faz doer ainda mais uma dor que, pra qualquer mulher, já dói.
abraço a mim mesma (o frio?) o mais forte que posso e meu namorado diz meu nome ao porteiro, um negro sorridente que fala alto no interfone: "tá subindo agora a malvina... a outra que subiu agora é... carmem. não, não: marcela". a voz alta e forte dele me faz estremecer. penso que ele não vai lembrar do meu nome daqui a poucos minutos, como esqueceu o da mulher antes de mim, e é como se isso me ofendesse de alguma forma.
subimos de elevador para o primeiro andar da clínica aparentemente deserta. as luzes quase todas apagadas, salas fechadas, corredores vazios. uma enfermeira nos manda aguardar numa pequena sala de espera. desabo no sofá de sono e tristeza. meu namorado pega uma revista velha que está sobre a mesa de vidro. duas faxineiras limpam uma sala próxima, falando alto. todos têm de estar dentro do esquema, penso com a minha cabeça de produtora investigativa. todos sabem o que acontece aqui nas madrugadas. o cachê deve ser alto.
somos encaminhados para um quarto, como um quarto de hospital chique ou, ironia macabra, de maternidade. a enfermeira, sorridente e impessoal, pede que eu vá ao banheiro e "tire toda a parte de baixo da roupa, tá, meu bem, a calcinha também" e vista o avental, a touca e umas meias esquisitas de centro cirúrgico. me pergunto se tenho cara de idiota ("a calcinha também") e num suspiro de vaidade feminina tento ajeitar a touca ridícula no espelho. meu namorado está do lado de fora e eu sei que deve estar pagando (em cash e diretamente para a enfermeira, como combinado) os muitos reais que custaram essa brincadeira. saio do quarto e ela não está mais lá. nos olhamos ainda constrangidos e não consigo suportar o carinho nem nenhum tipo de toque dele. penso que preferia ter vindo sozinha e me pergunto como faria para pagar a enfermeira. me pergunto o que achariam de mim se eu viesse sozinha. uma coitada. uma louca. uma pobre mulher abandonada por todos. eu teria vergonha de estar sozinha simplesmente porque a praxe é ter um acompanhante. mas nos longuíssimos quinze ou vinte minutos que aguardamos nesse quarto, eu nunca quis tanto estar só.
sou encaminhada a uma espécie de centro cirúrgico e mandam meu namorado esperar no quarto. finalmente encontro o médico, que me atendeu e negociou data e preço há poucos dias atrás. ele veste uma roupa esporte de marca e não usa avental. me pede pra deitar e me apresenta o anestesista, um menino novo, com jeito de médico recém-formado. diz que irei dormir em poucos segundos com a anestesia e por alguns instantes eu começo a achar que não está fazendo efeito. fade out.
sonho: estou num corredor abraçada num grande amigo meu. digo a ele: "você vai ser padrinho do meu filho".
fade in. acordo novamente no quarto e vejo a cara do meu namorado, sorrindo. pergunto se já acabou. estou confusa. ele começa a contar as coisas que eu disse quando voltei, entorpecida da morfina. que abracei o anestesista. etecétera e tal. inesperadamente, uma dor muito forte. quero ir embora imediatamente. tento levantar e não consigo. não sei por que não consigo. preciso sair daqui. tenho que sair daqui agora. meu namorado fica confuso mas tenta me acalmar. percebo levemente minha infantilidade e concentro minhas reclamações na dor, que de fato fica cada vez mais forte. choro e ele corre atrás da enfermeira, que traz um remédio amargo. a dor melhora aos poucos. é normal.
de volta a rua, a manhã já é clara.
não recomendo um aborto a ninguém. e não entrei, nem entrarei, no mérito de por quais motivos decidi fazer um aborto. mas uma coisa é certa e segura: uma boa parte do meu desgosto com essa situação teria sido evitado se o aborto no brasil fosse legal. a sensação criminosa, o dinheiro que se gasta e não se tem, o medo de uma complicação, tudo isso faz doer ainda mais uma dor que, pra qualquer mulher, já dói.
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