segunda-feira, outubro 13, 2008

azul demais

Quando abri os olhos, eles pesaram de volta. Ainda estava louca. Tentei fazer a conta de quantas horas havia dormido, não era possível ainda não ter passado. Quatro horas de sono. Sim, era possível.
Olhei para o lado tentando descobrir se a dele já tinha passado. Provavelmente não.
Quando os olhos fecharam de novo eu tive uma visão. Ele era uma piscina azul, calma, mas eu não conseguia ver meus pés. Nem sabia direito a profundidade. Então apenas boiava, aproveitando a calmaria. Era ótimo porque estava um sol forte que quase cegava os olhos, e estava tão fresquinho lá. Mas eu não mergulhava nunca, nunca.
E quando pensava em mergulhar, aparecia uma caixinha fechada a váculo, voando no céu com todos os meus traumas guardados, recém - tirados de mim. E eu então levantava a cabeça para não afundar. Ás vezes fazia falta, é diferente nadar de mergulhar. Queria mergulhar e tocar o chão com as mãos, sair como um raio pela piscina, porque quando a gente mergulha vai mais rápido. Mas não conseguia. Lembrava de já ter me afogado. Lembrava que antes, em outra piscina não tão calma nem azul, eu segurava a cabeça dentro da água até perder o ar e quase desmaiar. Era um vício. Lembrava de quase ter morrido afogada, e uma onda ter aparecido na piscina e me jogado pra fora. Agora, nadando de novo - porque o sol é forte e não dá pra ficar seca muito tempo - eu tenho medo de mergulhar, apesar de querer muito.
Levantei e fui fazer um café.
Barulho de água caindo do chuveiro do banho dele.

segunda-feira, outubro 06, 2008

como morrem os anjos

poucos carros circulam no amanhecer cinzento do sábado paulistano. seguindo as instruções do médico, estacionamos longe do número 432 da rua tal, apesar de, dado o horário, muitas vagas estarem disponíveis bem na frente do endereço. "evitem entrar de mãos dadas, como namorados. finjam que vocês são estudantes". um tanto constrangidos pela grandeza (?) do momento e também por lembrarmos, sem dizer, das instruções, seguimos separados e em silêncio até a portaria da construção moderna, toda branca, mesclando ferro e concreto.

abraço a mim mesma (o frio?) o mais forte que posso e meu namorado diz meu nome ao porteiro, um negro sorridente que fala alto no interfone: "tá subindo agora a malvina... a outra que subiu agora é... carmem. não, não: marcela". a voz alta e forte dele me faz estremecer. penso que ele não vai lembrar do meu nome daqui a poucos minutos, como esqueceu o da mulher antes de mim, e é como se isso me ofendesse de alguma forma.

subimos de elevador para o primeiro andar da clínica aparentemente deserta. as luzes quase todas apagadas, salas fechadas, corredores vazios. uma enfermeira nos manda aguardar numa pequena sala de espera. desabo no sofá de sono e tristeza. meu namorado pega uma revista velha que está sobre a mesa de vidro. duas faxineiras limpam uma sala próxima, falando alto. todos têm de estar dentro do esquema, penso com a minha cabeça de produtora investigativa. todos sabem o que acontece aqui nas madrugadas. o cachê deve ser alto.

somos encaminhados para um quarto, como um quarto de hospital chique ou, ironia macabra, de maternidade. a enfermeira, sorridente e impessoal, pede que eu vá ao banheiro e "tire toda a parte de baixo da roupa, tá, meu bem, a calcinha também" e vista o avental, a touca e umas meias esquisitas de centro cirúrgico. me pergunto se tenho cara de idiota ("a calcinha também") e num suspiro de vaidade feminina tento ajeitar a touca ridícula no espelho. meu namorado está do lado de fora e eu sei que deve estar pagando (em cash e diretamente para a enfermeira, como combinado) os muitos reais que custaram essa brincadeira. saio do quarto e ela não está mais lá. nos olhamos ainda constrangidos e não consigo suportar o carinho nem nenhum tipo de toque dele. penso que preferia ter vindo sozinha e me pergunto como faria para pagar a enfermeira. me pergunto o que achariam de mim se eu viesse sozinha. uma coitada. uma louca. uma pobre mulher abandonada por todos. eu teria vergonha de estar sozinha simplesmente porque a praxe é ter um acompanhante. mas nos longuíssimos quinze ou vinte minutos que aguardamos nesse quarto, eu nunca quis tanto estar só.

sou encaminhada a uma espécie de centro cirúrgico e mandam meu namorado esperar no quarto. finalmente encontro o médico, que me atendeu e negociou data e preço há poucos dias atrás. ele veste uma roupa esporte de marca e não usa avental. me pede pra deitar e me apresenta o anestesista, um menino novo, com jeito de médico recém-formado. diz que irei dormir em poucos segundos com a anestesia e por alguns instantes eu começo a achar que não está fazendo efeito. fade out.



sonho: estou num corredor abraçada num grande amigo meu. digo a ele: "você vai ser padrinho do meu filho".



fade in. acordo novamente no quarto e vejo a cara do meu namorado, sorrindo. pergunto se já acabou. estou confusa. ele começa a contar as coisas que eu disse quando voltei, entorpecida da morfina. que abracei o anestesista. etecétera e tal. inesperadamente, uma dor muito forte. quero ir embora imediatamente. tento levantar e não consigo. não sei por que não consigo. preciso sair daqui. tenho que sair daqui agora. meu namorado fica confuso mas tenta me acalmar. percebo levemente minha infantilidade e concentro minhas reclamações na dor, que de fato fica cada vez mais forte. choro e ele corre atrás da enfermeira, que traz um remédio amargo. a dor melhora aos poucos. é normal.

de volta a rua, a manhã já é clara.






não recomendo um aborto a ninguém. e não entrei, nem entrarei, no mérito de por quais motivos decidi fazer um aborto. mas uma coisa é certa e segura: uma boa parte do meu desgosto com essa situação teria sido evitado se o aborto no brasil fosse legal. a sensação criminosa, o dinheiro que se gasta e não se tem, o medo de uma complicação, tudo isso faz doer ainda mais uma dor que, pra qualquer mulher, já dói.